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Em um país marcado historicamente pela desigualdade racial, quais foram os avanços para romper com o racismo enraizado na sociedade brasileira? De que forma vamos conquistar a equidade de direitos e oportunidades para pessoas negras?

Confira a discussão sobre essas e outras questões neste episódio especial do Único, o podcast do Mattos Filho, com a mediação do sócio-diretor, Roberto Quiroga, e a participação das especialistas em temática racial Cida Bento e Sueli Carneiro e dos profissionais do Mattos Filho Patrícia Soares e Vítor Macabu.

Para ouvi-lo, clique no player acima ou acesse a plataforma de streaming de sua preferência. Você também pode ler, a seguir, os melhores momentos do bate-papo.

Retrato de Roberto Quiroga de perfil, sorrindo. Ele veste paletó azul-escuro e blusa azul-clara.
MEDIADOR: ROBERTO QUIROGA
Sócio-diretor e idealizador do Ecossistema social do escritório, estruturado nos pilares de advocacia pro bono, Cidadania corporativa e Instituto Mattos Filho.
Retrato de Cida Bento sorrindo usando blusa, brincos e óculos vermelhos.
Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

O racismo estrutural não se explicita num ato de racismo. Ele se explicita em taxas. Onde é que estão as mulheres negras dentro da nossa instituição? Justamente pelo racismo ser um crime inafiançável e imprescritível, ele não se manifesta explicitamente.”

Cida Bento

Roberto Quiroga: Começo nosso debate com uma pergunta conceitual para a Cida. Você poderia explorar um pouco a questão do racismo na estrutura da sociedade e qual seria a diferença entre racismo estrutural e desigualdade racial? E, também, por que ainda existe tanta gente que diz não ter racismo no Brasil?

Cida Bento: Vou começar respondendo a partir do teu último comentário. Porque ele não se explicita sempre, ele se entranha nas instituições e reflete a desigualdade na presença de homens e mulheres, negros e brancos, grupos LGBT, pessoas com deficiência – ou na ausência ou no lugar sub-representado. E, também, na maneira como se concebem as relações, os produtos que a instituição faz, os serviços que ela presta. O racismo estrutural não se explicita num ato de racismo. Ele se explicita em taxas. Onde é que estão as mulheres negras dentro da nossa instituição? No nosso conselho tem? Na nossa diretoria tem? No quadro de pessoal tem? Quando a gente se relaciona com a nossa comunidade, se relaciona também com organizações de mulheres negras? Estou dando esse exemplo, mas pode ser também da juventude negra, enfim.

Justamente pelo racismo ser um crime inafiançável e imprescritível, ele não se manifesta explicitamente. Os principais teóricos desse campo dizem: é nas estatísticas que você vai observá-lo. Tem um estudioso, que eu gosto muito e que trabalha com a psicanálise das instituições, o [Eugène] Enriquez. Ele diz que a instituição funciona a partir do perfil e da cabeça da sua elite na organização. Por isso que as pessoas dizem que não tem racismo institucional, porque está naturalizado que esse é um lugar de meritocracia e que os homens brancos são a maioria das lideranças institucionais no Brasil por uma questão de mérito, de sistema meritocrático. E todo mundo se surpreende ou acha que é “mimimi” quando trazemos essa dimensão de racismo na estrutura das instituições.

Roberto Quiroga: Ainda sobre esse conceito de racismo estrutural, em termos de Brasil, quais são os exemplos da existência desse racismo no dia a dia?

Cida Bento: Critérios, por exemplo; quando as secretarias da Saúde ou os órgãos públicos retiraram o CEP como um dos informativos sobre a pandemia no Brasil. O CEP identificava que a pandemia incidia mais nas favelas, nas periferias. Ou retirar raça. Tem uma legislação que diz que é preciso coletar o dado por raça. Só que fizemos mais de uma pesquisa mostrando que, em 70% dos casos, esse dado não é preenchido, para que não se explicite para a sociedade que, na periferia, morrem dez vezes mais negros do que brancos. Então, esse dado passou a não ser mais explicitado nos relatórios, e ninguém diz que é por racismo. Só diz que era difícil preencher e tal.

Outro exemplo está nos critérios implícitos que são utilizados para decidir quem é que pode esperar um julgamento em casa, porque não oferece perigo à sociedade, e quem é que precisa ficar encarcerado, sem ter sido condenado, porque na cabeça do operador de Direito oferece risco à sociedade. É naqueles critérios não objetivos. Às vezes, até no objetivo aparece. Mas é o mesmo critério que diz quem entra ou não entra em posições de liderança dentro das instituições.

Roberto Quiroga: Sueli, pegando um gancho no que a Cida falou, nós vemos que os efeitos do racismo são devastadores na população negra. Por exemplo, segundo o Atlas da Violência 2020, a taxa de homicídios de homens negros aumentou 11,5% em dez anos, enquanto a de homens brancos diminuiu quase 13%. A mortalidade de mulheres negras é quase o dobro das não negras. E nós temos vários exemplos de agressão física à população negra. Você vê alguma mudança nas reações a essa violência?

Sueli Carneiro: A violência racial é uma dimensão recorrente do racismo estrutural, com que você iniciou esta conversa. E o que há de surpreendente na forma como o racismo se manifesta na nossa sociedade é não apenas que essa violência recrudesce – a meu ver, como sintoma do agravamento da questão racial no Brasil – mas também como ela se dá com uma extraordinária indiferença da sociedade. Eu diria que, se algum de nós se ocupasse de fazer uma pesquisa, provavelmente chegaria a um resultado absurdo e extraordinário de que nem no contexto do apartheid sul-africano [regime de segregação racial] foi possível acontecer o nível de matança e extermínio impune de pessoas negras como ocorre no Brasil. E o que há de mais espantoso, para mim, nesse processo é a indiferença com que essa matança ocorre. Acho que não há nenhum tipo de sociedade que tolerou e que conviveu com níveis de genocídio como os que a gente encontra aqui de uma maneira tão confortável, e talvez isso seja a dimensão mais perversa, mais espantosa e assustadora do racismo brasileiro.

Roberto Quiroga: Tenho uma pergunta tanto para o Vítor quanto para a Patrícia a respeito desse tema do racismo estrutural. Como pessoas negras que estão na sociedade e que sofreram as consequências disso, quais ações vocês acreditam que poderiam ser tomadas – pelo Poder Público, nas normas jurídicas ou mesmo na esfera individual – para que essa violência com a população negra acabe ou seja reduzida? O que o Estado deveria fazer para que a gente possa ter uma melhoria desses índices que eu citei anteriormente?

Patrícia Soares: Eu gosto de citar o Silvio de Almeida, que fala que o racismo sempre é estrutural, porque ele vai permear questões muito profundas da nossa sociedade. Ele vai esbarrar na economia, na política, na ciência, na educação. Então, um caminho para repensar o nosso modelo de sociedade e repensar a forma que a gente trata o tema é ter essa discussão como agenda política, como agenda pública. Eu acredito muito nas ações intencionais que a gente pode aplicar. Acho que tem um olhar de reparação histórica, que deve ser primeiro considerado e, depois, em ações, de fato aplicado, para que a gente tenha alguma mudança no cenário que a gente vive hoje.

Vítor Macabu: Acho que essa pergunta atravessa o Estado como um todo. A Patrícia já falou da intencionalidade, e eu vou complementar com a questão de mapeamento e entender que é algo que perpassa todas as esferas. Quando pensamos em como o sistema judiciário se comporta em relação à população negra, algo que a Cida Bento já falou mais cedo, penso como o policiamento e a violência policial sujeitam a população negra a um agravo completamente desproporcional, quando comparado à população branca nos mesmos CEPs, o que a Cida também explorou aqui. Como se dá o acesso a serviços de saúde, como se dá o acesso à educação, como são as políticas para que haja a inserção da massa de pessoas negras deste país no mercado de trabalho. Vou concordar com a Patrícia sobre intencionalidade, mas eu acho que é algo que tem que ser pensado de uma perspectiva em 360 graus. Tivemos uma reparação histórica até hoje no Brasil, que foi a implementação da política de cotas no ensino superior, e outras que foram laterais a isso, o acesso ao serviço público etc. Isso aconteceu quando eu estava na graduação, alguns anos atrás. Não peguei ainda as cotas implementadas, mas, hoje, eu vejo que 15, 17 anos depois, a gente está em um lugar distinto do que eu via. A universidade não é mais como a que eu entrei, e a sociedade, o mercado de trabalho, as pessoas que estão ingressando não são mais as mesmas que eu vi quando eu ingressei. Hoje temos jovens negras e negros que estão acessando o mercado de trabalho, e isso vai ter um efeito multiplicador ao longo do tempo. Mas foi uma ação. E as outras? Acho que é essa a pergunta 360 graus, transversal, com relação ao Estado, que estou interessado em debater e trabalhar daqui por diante.

Roberto Quiroga: Podemos falar um pouco de um tema que a Cida abordou na sua primeira questão, que é o seguinte: a intersecção de identidades como um fator que agrava esse sistema de opressão. Por exemplo, a gente sabe que uma mulher negra e lésbica tem mais chance de sofrer algum tipo de violência durante a sua vida, justamente por conta dessa intersecção de suas identidades de raça, gênero e orientação sexual. Então, nesses casos, Cida, você avalia que é preciso pensar em políticas públicas e ações específicas que deem conta dessa maior exposição à violência?

Cida Bento: Eu penso sempre em políticas públicas e privadas. Entendo que o cenário que temos hoje só existe porque tem quem pague para que as coisas estejam dessa maneira. Por exemplo, as reformas neoliberais têm um impacto devastador na população negra, na vida das mulheres negras, na vida das lésbicas. E isso foi fomentado ao longo dos anos pela mídia corporativa, que traz essa voz mais neoliberal, essa voz mais do segmento de investidores. São políticas que afetam justamente o território de termos políticas públicas… Deveríamos ter um Estado de bem-estar social bem estruturado, porque a população negra utiliza essencialmente os serviços de educação e de saúde públicos. Acho muito importante situar nesse processo o privado, que pressiona para que o setor público fique cada vez mais enxuto. Isso interessa a quem? Acho bastante importante pensar nesse acirramento da tensão social, que surge não só a partir da ampliação da presença negra onde ela não estava antes – nas universidades, na mídia, nos aeroportos, aquele território que o branco define que é seu território. Essa presença incomoda, e isso pode ser um gatilho para o desconforto que surge diante de uma voz que reivindica a equidade racial, mas, mais do que isso, vários estudiosos, como Frantz Fanon, dizem o seguinte: no segmento branco, não se apagou a ideia de que há credor e devedor.

Então, herança, para brancos e negros, é um ponto central no meu pensamento sobre relações raciais no Brasil. Toda vez que eu falei em cursos, dentro de empresas, sobre herança branca, é como se o branco não se visse como parte dessa história. Qualquer coisa que você diz, ele responde: “É porque os negros foram escravizados, por isso que eles estão nessa situação hoje”. E a pergunta é: será que os brancos estão nessa situação que estão hoje porque foram escravocratas? Nesse sentido, acho que o que incomoda é que, em alguma parte de todo branco e de [todo] negro, se sabe que tem um processo de expropriação que desigualou os grupos. E, por fim, quem esteve fora olha para esse sistema de um outro jeito, de uma maneira mais crítica. Por estar fora e por não estar tão amarrado na sua maneira de se manifestar, quem esteve fora está mais livre para pensar como é que deveria ser mesmo uma sociedade. O que é mesmo uma democracia?

Esse desconforto que aparece muito na voz das mulheres negras, das mulheres indígenas, das lésbicas, que é: outra sociedade precisa ser criada com outros parâmetros. Então, o assassinato de negros e de negras também vem por conta de “este é o credor”, “esta é aquela que foi expropriada”, em alguma parte todos sabemos, e vem propor uma coisa que vai desmantelar o sistema do qual nós nos beneficiamos em alguma dimensão, mesmo sendo pobres. Uma branca pobre sabe que ela tem uma condição de privilégio se comparada a uma negra pobre. Então, essas vozes querendo outro tipo de sociedade são vozes que desmantelam o que me beneficia.

Retrato de Sueli Carneiro usando casaco e óculos pretos, blusa e colar em tons nude.
Foto: Ze Carlos Barretta/Folhapress

Acho que não há nenhum tipo de sociedade que tolerou e que conviveu com níveis de genocídio como os que a gente encontra aqui de uma maneira tão confortável, e talvez isso seja a dimensão mais perversa, mais assustadora do racismo brasileiro.”

Sueli Carneiro

Roberto Quiroga: Gostaria de entrar em um tema atrelado à pandemia. Um estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde da PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio de Janeiro mostrou que a taxa de letalidade da Covid-19 entre pretos e pardos foi de 55%, enquanto a de brancos foi de 38%. Sueli, você poderia comentar este momento que estamos passando e o agravamento da violência para a população negra em vista da pandemia?

Sueli Carneiro: Antes disso, eu acho importante retomar um ponto que a Cida colocou e que eu queria assinalar desde o começo da nossa conversa, que é como nós temos o hábito de trabalhar com a questão racial mantendo nesse debate um sujeito oculto, sempre. Uma das dificuldades que eu tenho com o conceito de racismo estrutural está diretamente ligada ao fato de que é possível manipular esse conceito de tal maneira que ele perde densidade humana. Nós falamos de uma abstração que não se concretiza nos sujeitos concretos, que produzem e reproduzem sistematicamente as desigualdades raciais. Quando eu falo racismo estrutural, “ah, é a empresa”, mas não tem o agente. E o racismo estrutural tem um agente. É preciso reintroduzir o branco como ser hegemônico, como aquele dotado do poder de promover transformações efetivas nas relações raciais, aquele que precisa renunciar aos privilégios para que igualdade e democracia se efetivem no Brasil. É preciso que o branco compareça nesses debates como sujeito, e não como uma ideia abstrata atrás de um conceito abstrato de racismo estrutural – diante do qual os negros têm que comparecer como se fossem responsáveis únicos e exclusivos para essa mudança.

Esse debate precisa tirar das sombras o sujeito ativo, um “eu hegemônico” que responde pela estrutura que essa forma de racismo organizou. Por isso que eu tenho dificuldade com esse conceito [de racismo estrutural]. Prefiro trabalhar com o conceito, de um filósofo afro-americano, de contrato racial. Já que nós estamos num contexto de advogados, acho que é muito pertinente usar a figura do contrato, porque esse filósofo parte do contrato social, que ele diz que é a língua franca do nosso tempo.

Ele parte desse pressuposto para questionar não apenas o contrato social, mas para propor a noção de um contrato racial, que é muito plástica para compreender do que estamos falando. Ele diz que o contrato racial estabelece uma sociedade racialmente organizada, um estado racial e um sistema jurídico racial – onde o status de brancos e não brancos é claramente demarcado, quer pela lei, quer pelo costume. Mais do que tudo, esse contrato racial é um contrato firmado entre iguais – portanto, entre brancos. Baseado nesse contrato racial, este país construiu uma dimensão social branca que é como um clube privé, onde vivem os brancos e no qual os negros entram apenas para servir – quando são autorizados a entrar. Portanto, toda a iniquidade social fica segregada no mundo negro, que constitui um IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] inferior à maioria das piores nações do mundo.

Os brancos têm que ser convocados a esse debate para saber até quando nós vamos insistir num país que tem ilhas de prosperidade, desenvolvimento, justiça social, que é experimentado por uma minoria branca, cercado de indigência humana por toda a parte, que é o país habitado por negros. Isso é uma negociação que, sem o “eu hegemônico”, não é possível de se efetivar. Um novo projeto de sociedade, um novo projeto de nação. É mais uma dimensão de opressão esperar que nós tenhamos que reeducar a sociedade, vítimas que somos de uma estrutura de opressão que não fomos nós que criamos, e ainda que nós tenhamos a responsabilidade exclusiva de corrigir todas as mazelas que esse sistema político instituído pela branquitude colocou neste país.

Acho que as desigualdades que se apresentam nas questões da pandemia eram absolutamente esperadas. O racismo produz iniquidade em todas as dimensões sociais. Evidentemente que o ônus maior recai sobre os grupos vulnerabilizados. Não há nada de novo aí. Aconteceu com todas as outras epidemias. O que há de, razoavelmente, inesperado é a explicitação de como as comunidades e os territórios resistem ao abandono social, ao genocídio, que foi a forma como essa pandemia foi tratada. Se o risco dessa mortandade provocada pela pandemia estivesse sobre populações brancas, dificilmente esse governo poderia se comportar da forma como se comporta. É a certeza de que vai morrer muito pobre, muito preto, muito nordestino que permite que ele possa atuar com tanta negligência em relação à pandemia.

Então, não tem nenhuma novidade. Há, sim, a extraordinária resistência e resiliência demonstrada pelas comunidades, a capacidade de organização que elas vêm demonstrando durante a pandemia para redução de danos e prevenção, essa capacidade que os territórios demonstraram no sentido de conseguir sustentar a resistência a esse abandono. O melhor que nós pudemos ver nesse contexto todo é que esta gente que está por sua própria conta continua em riste, em luta, em defesa das suas próprias comunidades.

Roberto Quiroga: Obrigado, Sueli. É muito importante o que você colocou, um discurso fundamental. Essa ideia que você traz do contrato racial, que é talvez pouco conhecida, é um conceito que a gente pode trabalhar com mais cuidado. E acho que é isso que você falou, a figura do branco como a de alguém que tem que aparecer para esse debate e realizar o que for necessário para, justamente, compensar todo esse período de expropriação que a população negra passou. Entrando mais nessa questão, eu gostaria de perguntar à Patrícia qual seria esse papel necessário para nós, brancos, estarmos também nesse debate e conseguirmos, obviamente, que ele tenha frutos. A figura do aliado seria um exemplo importante. Como você vê a figura do branco ao teu lado e até que ponto a gente pode estimular isso, dentro desse debate que foi colocado pela Sueli?

Patrícia Soares: A fala da Sueli foi brilhante nesse sentido. Na luta antirracista, o que eu entendo é que, sim, o branco tem um espaço que ele precisa ocupar, de ser um agente transformacional também, de entender a responsabilidade que se tem no cenário que hoje está colocado. Acho, também, que se deve dar o protagonismo ao povo preto. Quando falamos da luta antirracista, temos um papel importante das pessoas que são negras e que, de fato, falam da causa. Mas vejo, aqui, a figura do aliado como fundamental para que a gente realmente mude a estrutura e quebre os paradigmas sociais impostos à sociedade. Gosto muito de uma fala que a Cida e a Sueli trouxeram, e que a Laura, uma colega nossa de Mattos Filho, traz muito, que diz que, depois que a gente cria esse espaço de discussão, de diálogo constante e de consciência, a gente parte para a ação – e essa ação, geralmente, causa uma indisposição. Porque estamos falando, no fundo, de abrir mão de privilégios que hoje os brancos têm para que se construa um lugar comum com a população negra.

Tivemos uma reparação histórica até hoje no Brasil, a política de cotas no ensino superior. Hoje temos jovens negras e negros acessando o mercado de trabalho, e isso vai ter um efeito multiplicador ao longo do tempo. Mas foi uma ação. E as outras?”

Vítor Macabu

Roberto Quiroga: Obrigado, Patrícia. Realmente, como população branca, também temos que estar nesse debate, como disse a Sueli, principalmente porque nós fomos o sujeito ativo de todo esse período de expropriação dos direitos da população negra. Mas nós vemos um avanço, pelo menos na nossa área do Direito – e a Cida vem participando bastante de iniciativas do grupo jurídico nesse sentido –, e temos visto uma evolução. Claro, ainda muito tímida, mas, pelo menos, uma conscientização grande do mundo jurídico de que devemos realmente nos preocupar com essas questões.

Gostaria de ouvir a opinião do Vítor, que tem um histórico muito importante – como falamos, ele veio do mundo corporativo – sobre os programas que as empresas vêm desenvolvendo com foco em diversidade e equidade racial. Você acha que têm funcionado? Isso se confunde um pouco com o marketing da empresa? Até que ponto essas ações são genuínas e como você vê essas iniciativas?

Vítor Macabu: Vejo com bons olhos, acho que o debate avança. Quando eu estava na graduação, e mesmo quando era um profissional de menor senioridade, não aconteciam debates como este. O que se ouvia muito, até cinco, dez anos atrás, era aquele discurso de uma meritocracia vazia, que acho que é uma coisa que ficou superada no bom debate. Tenho conversado com alguns executivos e executivas negros que eu conheço que estão engajados em suas instituições. Eles não são, por coincidência, do meio jurídico, são do meio empresarial em si, mas a gente tem se falado muito, trocado muita informação sobre como tem sido o processo interno, como as iniciativas têm atraído muita atenção e como há um esforço genuíno de fazer a coisa certa. Acho que, daqui a alguns anos, vamos abrir o site da CVM [Comissão de Valores Mobiliários] e ver diretores e diretoras negros e negras em maior proporção do que vemos hoje e do que vimos historicamente.

Com relação especificamente ao meio jurídico, novamente, acho que há evolução. Mas queria situar um pouco o debate aqui. Tenho em torno de 11, 12 anos de formado e, quando eu estava na graduação, não havia cotas – então, não havia massa de estudantes negros. Havia muitos advogados negros, mas não havia massa para participação em processos seletivos. A partir do momento que são implementadas as cotas de acesso ao ensino superior, os estudantes negros começam a se conversar mais, há criação dos coletivos… Eu não vi isso na minha época de graduação. Hoje, o que eu noto é que estamos posicionados nos escritórios de advocacia, a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, da qual o Mattos Filho faz parte, tem pensado em como dar um passo adiante para criar iniciativas para aumentar o número de profissionais negros. Percebo que as iniciativas têm sido efetivas para atrair a base dos estudantes.

Sou uma das poucas pessoas [negras] da minha geração que não fez carreira pública, que não foi para a magistratura ou para o Ministério Público. Por quê? Porque, lá atrás, [os escritórios de advocacia] eram um meio muito refratário à ascensão de advogadas e advogados negras e negros, não eram ambientes historicamente receptivos à população negra. Não havia esse cuidado de atração, desenvolvimento e retenção. O que eu noto agora é que há consciência, há vontade de fazer essa atração, mas que, neste momento, a gente está populando a base da pirâmide. Eu me pergunto se a gente não está posicionado em algum momento para dar um passo adiante e pensar como vamos fazer para receber e captar essa massa de advogados negros e negras que quer atuar, mas que, de repente, não se sentem ainda vinculados ou têm outros projetos. Acho que já estamos posicionados para propor um debate de atração de pessoas de menor senioridade, de média senioridade, para que a gente possa ter um avanço um pouco mais acelerado e consistente. Caso contrário, vamos precisar de alguns anos, talvez décadas, para poder atingir os objetivos que a gente almeja nos escritórios de advocacia.

Roberto Quiroga: Obrigado, Vítor. A Cida vem trabalhando bastante no Ceert [Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades] em vários projetos interessantes no mundo corporativo justamente para ampliar a equidade racial. Entre esses projetos estão alguns censos sobre a participação dos negros – como um do setor financeiro, feito em parceria com a Febraban [Federação Brasileira de Bancos] e, também, um com a Aliança Jurídica pela Igualdade Racial. Eu queria te ouvir um pouco, Cida, sobre quais poderiam ser os avanços na área corporativa para que a gente consiga ter uma discussão mais franca sobre esses temas. E como você vê essa possibilidade de crescimento dessas discussões, não só no mercado financeiro e jurídico, mas também em outras áreas.

Cida Bento: Eu sou muito otimista. Porque, de um lado, vejo a juventude e a população negra ocupando outros espaços, suas vozes mais impacientes e querendo respostas, não entendendo que as coisas podem continuar assim. E, de outro lado, cresce o número de organizações e pessoas brancas que também estão vendo uma insustentabilidade da sociedade do jeito que está. Eu sou bastante otimista nesse sentido, com todas as tensões que eu e Sueli levantamos aqui. Porque, enquanto a gente se disser uma sociedade que anseia pela democracia, o território da conversa, o território do diálogo, o território de colocar as ideias, de construir consensos, enfrentar dissensos, trazer o passado para ser olhado enquanto território objetivo e subjetivo de acúmulos diferenciados para os grupos, tudo isso está sendo possível fazer crescentemente.

Eu acho que nós estamos no caminho e que ajuda o fato de isso estar sendo mais tematizado pelos brancos de diferentes níveis. Eu não vejo jeito de, em uma sociedade onde o branco é o incluído, o que está com a caneta da decisão na mão, a gente conseguir avançar. Ou seria pelas armas, que eu acho que não é isso – embora o presidente diga que é e esteja investindo no armamento. O outro jeito é o diálogo em diferentes níveis com todo tipo de instituição, do Judiciário, do Legislativo. Entrar nas instituições e conversar sobre isso. Eu sinto como se tivesse um longo tempo de gestão de tensões e de crescimento da impaciência negra, da consciência negra sobre si própria, mas que não passou despercebido pelo branco. O branco está sabendo. Se a gente quer uma sociedade sustentável, nossa instituição sustentável, temos que começar a nos mexer. Esse diálogo que se dá, este mesmo aqui que nós estamos tendo agora, é o que me indica que as coisas vão mudar.

Retrato de Patrícia Soares sorrindo, usando uma blusa branca e colar bege

Um caminho para repensar o nosso modelo de sociedade e repensar a forma que a gente trata o racismo é ter essa discussão como agenda política, como agenda pública. Eu acredito muito nas ações intencionais que a gente pode aplicar.”

Patrícia Soares

Roberto Quiroga: Estamos caminhando para o fim e eu gostaria de fazer uma rodada final, começando pela Sueli, sobre o que acha que vamos estar preparados para enfrentar em termos de futuro. Você vê um avanço? Em que setores você acha que deveríamos atuar mais? Se você pudesse dar para a gente uma visão dos próximos passos e onde devemos investir para que esse tema tenha efetivamente um progresso.

Sueli Carneiro: Acho que nós chegamos no cerne da questão. Existe um problema racial grave neste país, que produz miséria, violência, injustiças e desigualdades. Estamos adentrando um limiar de ter que decidir se nós insistimos nesse caminho ou se encontramos algum tipo de coesão ética na sociedade para construir um outro projeto. Eu sempre insisto numa frase que teria sido dita por Nelson Rodrigues, segundo a qual “o subdesenvolvimento não se improvisa, é uma tarefa de séculos”. Portanto, o país que nós temos não é fruto do acaso. É produção humana, é produto de decisões que foram tomadas ao longo de sua história, sobretudo por suas elites.

Eu sempre digo que as elites intelectuais deste país, no final do século XIX e no começo do século XX, tinham divergências em relação a um ponto apenas: quanto tempo levaria para o país se livrar dessa “mancha negra”. A ideia de se livrar da população negra sempre esteve presente no projeto de país das elites brasileiras. E não é uma ideia que foi abandonada, muito pelo contrário. No governo atual, vemos muito bem a ressonância desse paradigma. O 13 de Maio produziu o abandono social da população negra.

É necessário um outro projeto de nação, que possa incluir negros e indígenas – as duas populações que foram descartadas, desde o início de modernização da sociedade brasileira. Isso significa que alguns pressupostos precisam ser incluídos. Concordo com a Cida em que há nichos nos quais percebemos uma disposição no sentido de que não é possível insistir nesse projeto de nação, sobretudo porque implica manter em situação de apartheid mais de metade da população do país. E isso é uma bomba. Uma bomba de efeito retardado, que não se sabe quando isso explode.

Eu gostaria de citar a ótica que eu vejo que as pessoas brancas precisam adotar para fazer frente e ser proativas nesse diálogo. Eu cito uma frase que diz o seguinte: “Neste momento, não basta ser contrário ao racismo”. Quem está dizendo isso é um homem branco. “É preciso fazer mais”, diz ele. “É imperativo colocar o enfrentamento do racismo no centro da vida política brasileira. Defender e fortalecer políticas afirmativas. Alterar práticas corporativas. Reformar as agências de aplicação da lei e reprimir juridicamente condutas discriminatórias e racistas que permeiam as nossas relações cotidianas. Sem enfrentar o racismo, jamais superaremos a desigualdade econômica, a marginalização social, a opressão e a violência. Sem derrotar o racismo, jamais nos humanizaremos como nação. O protagonismo do movimento negro não exime brancos antirracistas da responsabilidade de participar dessa luta.”

Eu acho que é uma frase que sintetiza a agenda que vocês, brancos, têm a cumprir. Essa é uma frase do advogado Oscar Vilhena, que, em diferentes situações, tem sido alguém com quem a gente tem podido contar e que fez toda a diferença, por exemplo, na audiência do STF [Supremo Tribunal Federal] em defesa das cotas para negros nas universidades, quando do julgamento da célebre Adin [Ação Direta de Inconstitucionalidade]. Então, eu acho que são exemplos da tarefa hercúlea que há a fazer. Uma tarefa hercúlea para desconstruir essa obra perversa que é este país com os maiores níveis de desigualdade social que existem no mundo, com os mais altos índices de concentração de renda e riqueza que existem no mundo.

Roberto Quiroga: Obrigado, Sueli, pela excelente colocação. Isso que o Oscar falou, e como hoje diretor da Escola de Direito da FGV, é algo que está sendo disseminado e é importante para todos nós. Para finalizar, queria ouvir o Vítor, a Patrícia e, por fim, a Cida, também sobre essa ideia de avanço e de futuro.

Vítor Macabu: Eu sou uma pessoa otimista e acho que temos de ultrapassar a fase do consenso, da leitura, e ir para a ação. A tônica deste debate passou muito pela questão da implicação das pessoas brancas que detêm a direção das estruturas. Antes dessa implicação, acho que teremos dificuldade de continuar a mover esforços adiante. Eles continuarão a acontecer, certamente, mas numa velocidade que não é a que a gente almeja. Acho que o último ano foi bem difícil, em geral, por questões da pandemia, do distanciamento social, o debate racial, que não é simples, é uma carga mental sobre as pessoas negras que não é fácil de lidar. Mas houve conversas que eu tive no ano passado que gostei muito e foram importantes. E, se a gente avançou mais do que eu imaginava no ano passado, que bom – estamos um pouquinho mais adiante do que seria o normal. Vamos avançar mais, a gente tem que ganhar tempo. A obra que a gente tem, as coisas que a gente tem que resolver têm séculos. Se a gente avançou cinco, seis anos no debate, que avancemos agora dez, vinte, trinta anos. Acho que a minha mensagem é essa.

Patrícia Soares: Eu também tenho otimismo. Acho que ainda temos uma jornada para enfrentar, muitas coisas ainda precisam ser modificadas, alguns paradigmas sociais que precisamos desconstruir e reconstruir. Mas acho, sim, que houve um avanço e sou otimista com o futuro. Vejo as pessoas falando mais da luta antirracista. Um dado interessante de 2020 foi a quantidade de livros que tratam dessa temática no topo de vendas, o livro Pequeno manual antirracista, da Djamila Ribeiro, como um dos mais vendidos. Esse processo, de novo, reforço que ele é sobretudo intelectual – você ler sobre e falar sobre, ter espaço permanente de diálogo sobre o tema. Acho que tivemos um grande avanço aqui. Vejo também uma mudança na questão da autorresponsabilização, tanto pessoal (de como eu olho para o mundo, como eu entendo o meu papel enquanto pessoa que pode transformar) como também institucional (como as empresas, como os escritórios têm se posicionado enquanto agentes transformacionais e também atuado nessa luta antirracista).

Cida Bento: Na primeira vez que eu falei num evento da Aliança [Jurídica pela Equidade Racial], eu disse o quanto eu admirava a área de Direito. Falei do [Nelson] Mandela, falei de grandes lideranças que fizeram diferença nesse campo de luta racial, de luta pela promoção da equidade. Então, eu queria fechar minha fala pensando o futuro a partir daí. Quando um branco antirracista me pergunta: “O que eu posso fazer neste momento, que eu estou desconfortável?”. Eu sempre digo: faça o que você puder no lugar onde você está. Porque, em geral, nas instituições, quem está na liderança, com a caneta de decisão na mão, são brancos. Então, faça o que você pode do lugar onde você está.

Eu sei e valorizo muito o que o Mattos Filho está fazendo e a Aliança Jurídica [pela Equidade Racial] faz, mas é possível mais ou é possível avançar num território em que se comece a conversar sobre essas questões com o operador de Direito, e ele será branco, porque eu estou falando de juízes, de promotores, procuradores. Também é preciso reconhecer um outro tipo de diálogo, com juristas negros, para recuperar esses estudos, esse saber que está acumulado com eles. Promover palestras nas universidades. De alguma maneira, mostrar para o operador de Direito como ele contribui para o que estamos vivendo de violência e de que maneira poderia ser diferente. Queria finalizar dizendo isso, e que o Mattos Filho tem um lugar especial, e a Aliança Jurídica [pela Equidade Racial], enquanto coletivo de advogados, pode encontrar um nicho para começar a discutir o lugar do Direito, para ajudar o operador de Direito branco a ver o que está fazendo, o seu medo, o seu lugar de branco, e como poderia ser diferente.